sábado, 3 de janeiro de 2015

Humanismo


Chamamos de Humanismo o período histórico entre os séculos XIV e XV, que corresponde à transição entre o Trovadorismo da Idade Média e o Renascimento. Ou seja, o Humanismo foi uma preparação para o Renascimento, há uma tensão entre "velho" e "novo".

O pensamento medieval lentamente caía por terra. O comércio se expandia por efeito das navegações e surgiam os grandes centros econômicos — cidades portuárias como Florença, Gênova, etc. As pessoas passavam a migrar dos feudos para habitar as novas cidades muradas, os chamados burgos, onde vivia a burguesia nascente.

O surgimento da burguesia significou a mudança no sistema econômico estabelecido no feudalismo: à base de trocas (escambo). A burguesia criou o comércio e a moeda, surgiu a ideia do lucro, a ideia do acúmulo de capital e da perspectiva de ascensão social, que se chocou com os ideais católicos.



A burguesia passou a investir em cultura, o que até então só era feito pela Igreja e pelos soberanos. O enfraquecimento do poder da Igreja sobre a cultura significou e redescoberta de textos e autores da Antiguidade clássica (greco-latina). Resgata-se, assim, a visão antropocêntrica — os eruditos defendem a reforma total do homem, o homem no centro das coisas.

Tudo isso é feito, mas o imaginário cristão ainda é uma constante no período do Humanismo, como se vê na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Sendo um poema épico escrito entre 1307 e 1321, narra a viagem de Dante ao inferno, purgatório e paraíso, guiado nos dois primeiros lugares por Virgílio e encontrando sua amada Beatriz no paraíso, onde Virgílio não entra por não ter sido batizado. É possível que Beatriz represente a e Virgílio a razão, os dois polos em que se debate o homem do Humanismo.

Por volta de 1450, Gutenberg cria a imprensa, fazendo com que a cultura oral perca espaço para a cultura escrita.


A produção literária deste período está constituída de três manifestações muito distintas entre si, sendo que a primeira que abordaremos gira em torno do homem que falaremos agora. O Humanismo chegou em Portugal em 1434, com a nomeação de Fernão Lopes para ser guardador-mor da Torre do Tombo, alguns anos antes da revolução de Avis. Como cronista e historiador, seu papel era colocar em ordem cronológica a história portuguesa, além de catalogar e conhecer todos os documentos disponíveis naquele lugar. Hoje, tal torre não existe mais, pois desabou em um terremoto em 1755.

Simplificando, sua função era registrar em crônicas as histórias dos reis que governaram Portugal. Conhecido pelo seu descritivismo, pesquisa histórica, linguagem acessível e imparcialidade na apresentação dos fatos, Fernão Lopes é considerado o pai da historiografia portuguesa. Pela primeira vez, com Fernão Lopes, o povo é retratado como personagem importante na história do país. Já durante essa época, a língua portuguesa toma contornos nitidamente diferentes do galego-português.

Trecho da Crônica d'El-Rei D. Pedro
[...] Ora deixemos os jogos e festas que el-rei ordenava por desenfadamento,
nas quaes, de dia e de noite, andava dançando por mui grande espaço; mas
vêde se era bem saboroso jogo. Vinha el-rei em bateis de Almada para
Lisboa, e saiam-no a receber os cidadãos, e todos os dos misteres, com
danças e trebelhos, segundo então usavam, e elle saia dos bateis, e
mettia-se na dança com elles, e assim ia até ao paço.

Paraementes se foi bom sabor. Jazia el-rei em Lisboa uma noite na cama,
e não lhe vinha somno para dormir, e fez levantar os mocos e quantos
dormiam no paço, e mandou chamar João Matheus e Lourenço Palos, que
trouxessem as trombas de prata, e fez accender tochas, e metteu-se pela
villa em dança com os outros. As gentes que dormiam, saiam ás janellas,
a vêr que festa era aquella, ou por que se fazia, e quando viram
d'aquella guisa el-rei, tomaram prazer de o vêr assim lêdo. E andou
el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao paço em dança, e pediu
vinho e fructa, e lancou-se a dormir.


A segunda manifestação é a de Gil Vicente, considerado o primeiro grande dramaturgo português. Sua primeira peça conhecida é Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro (1502), uma homenagem à rainha, pelo nascimento de seu filho, o futuro rei D. João III. O texto e a encenação agradaram tanto a rainha que ele se tornou protegido. Sob proteção do rei D. Manuel e, mais tarde, D. João III que Gil Vicente irá escrever boa parte de sua obra dramatúrgica, composta de farsas (auto de 1 só ato que se destina a criticar o comportamento de alguém) e autos (peça de teatro escrita em verso).

As personagens de Gil Vicente são tipos comuns dentro das instituições que faziam parte que faziam parte da sociedade portuguesa da época, a linguagem coloquial adaptada à classe social de cada personagem, as peças eram escritas em versos (geralmente redondilhas maiores ou menores — cinco ou sete sílabas poéticas) e apresentavam um teor de crítica social, funcionavam como agente moralizante e continham um fundo religioso característico do Humanismo.

Gil Vicente se valeu muito de sátiras para denunciar exploradores do povo (como o fidalgo, o sapateiro e o agiota em Auto da Barca do Inferno) e ridicularizar condutas condenáveis (como a do velho protagonista de O velho da horta ou de Inês Pereira, personagem principal de A farsa de Inês Pereira).



Por fim, a terceira e última manifestação é a da poesia palaciana. As cantigas trovadorescas perderam o prestígio e, de 1350 a 1450, não houve registros de obras poéticas. Somente durante o reinado de D. Afonso V a produção poética foi estimulada e era praticada nas cortes (por isso, palaciana).

A inovação da poesia palaciana é a separação da música, sendo agora escrita para declamação, ao contrário das cantigas trovadorescas. É uma poesia mais bem elaborada e sofisticada (o público da corte assim exigia), de eu lírico essencialmente masculino e uso de muitas metáforas, metonímias e prosopopeias.

Há uma certa limitação quanto ao conteúdo e visão de mundo, pois os autores (nobres e fidalgos) se limitavam à realidade palaciana, abordando festas, comportamentos, trajes, banalidades e uma visão de amor mais sensual do que a do Trovadorismo. Os versos foram escritos no formato de redondilhas (de cinco ou sete sílabas poéticas), mas preservou-se a coita amorosa trovadoresca. Os poemas deste período foram reunidos por Garcia de Resende e, em 1516, publicados sob o nome de O Cancioneiro Geral, reunindo 286 poetas com mais de mil composições.

Cantiga sua partindo-se

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
João Ruiz de Castelo Branco

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